domingo, agosto 02, 2009

A PRÁXIS PEDAGÓGICA NO MAGISTÉRIO JURÍDICO

Periodicamente, somos informados pela mídia da proliferação (digo, mercantilização) de Cursos de Direito em todo o Brasil. Há uma declarada pressão da OAB junto ao MEC-Sesu para que este seja mais rigoroso na aprovação de novos cursos em faculdades particulares, para que haja restrição na oferta de vagas e para que aquele Órgão faça um acompanhamento criterioso, intensivo e ostensivo, dos cursos já autorizados, pois a preocupação da OAB, com razão, é a qualidade do ensino que vem notória, paulatinamente e consideravelmente decaindo, fato que os Exames de Ordem têm atestado. Por outro lado, há pressão por parte de alguns parlamentares que elaboraram projeto de lei pedindo a abolição do Exame de Ordem. Eles alegam que não é de competência da instituição OAB atestar a qualidade dos cursos, através do Exame de Ordem, mas do próprio MEC-Sesu, por meio de instrumentos como o ENADE, por exemplo.

Enquanto essa contenda não se resolve, caro/a leitor/a, peço vênia para compartilhar minha experiência, enquanto acadêmica do curso de Direito, cujo propósito é o de compartilhar com os profissionais do ensino jurídico o que aprendi nos cursos latu e strictu sensu de Magistério do Ensino Superior e das Ciências da Educação e com a experiência de apenas 15 anos, lecionando no nível superior.

Principio pela análise do descaso pelos planos de ensino, ou se preferirem planos de disciplina, apresentados (e às vezes insistentemente cobrados) no início de cada semestre. Quase sempre, não há correlação entre o conteúdo que está elencado e o que é trabalhado, o que evidencia não ter havido replanejamento do mesmo para o novo semestre.

O plano de ensino está para aluno e professor, como a carta de navegação está para os navegantes. Sem estarem atualizados corre-se o risco de desnorteamento ou, até mesmo, naufrágio. É exatamente o que vimos sentindo, desnorteamento!

Em todos os planos de ensino analisados, pudemos perceber que tanto o conteúdo quanto a metodologia não são seguidos conforme apresentados. Exemplifiquemos: em quase cinco meses de aula (equivalente ao semestre) não acreditamos ser possível trabalhar, quando se objetiva a aprendizagem, dezesseis unidades (cada uma com a média de 9 itens) em apenas quatro horas/aulas semanais! Ou ainda trabalhar apenas uma unidade de um plano de ensino e fatiar as demais em “trabalhos”, que não são corrigidos, ou em “seminários”, dos quais não se recebe feedback algum, apesar do uso de dois horários por grupo, estendendo-se os mesmos até a integralização da carga horária. É preciso mencionar também aqueles planos nos quais não se consegue localizar, ou identificar, qual item ou unidade o professor está trabalhando, tamanha a desordem que se implantou. Porém, o assunto não se extingue com isso: após reiteradas cobranças, um cronograma de aulas foi entregue no lugar do plano de ensino, como se lhe fosse sinônimo!

Quanto à metodologia de ensino, alguns planos apresentam diversos procedimentos como estudos de caso, debates temáticos, críticas bibliográficas, vídeo-aula, uso de data show, pesquisas em grupo, produção de textos, debate/seminário orientado, leitura, interpretação e discussão de texto. Tudo só no papel, amigo/a leitor/a! O que predomina é a tradicional aula expositiva, aliás, aula ditada! Isso mesmo, é preciso fazer as anotações dos conteúdos que serão cobrados na prova. Que desperdicio de tempo e esforços num século em que tantas opções de aulas interessantes e significativas se oferecem!

Não se preparam apostilas, talvez porque dê muito trabalho. O único professor que faz uso delas, não socializa seu material, permitindo apenas que tenhamos acesso a alguns fragmentos de textos de apostilas extraídos da internet, após ele explicar todo o conteúdo, e alegando que esse procedimento se justifica, porque, dessa maneira poderemos prestar mais atenção às aulas; isso, parece inacreditável não é amigo/a leitor/a, se nos lembrarmos de um velho adágio que diz que “não se pode assobiar e chupar cana ao mesmo tempo”? Novas filosofias?

Existem ainda aqueles que adotam um único livro, mantendo-se fiel a ele de tal forma que, na avaliação, substituem-se palavras de determinadas frases retiradas das páginas desse livro, para se avaliar o quanto aprendemos. Tais provas, que exigem os tradicionais processos de memorização, não estimulam a elaboração intelectual dos discentes, mas sob a alegação de que não é professor de Língua Portuguesa para corrigir deslizes dos alunos, ele insiste com esse procedimento.

Há ainda aqueles que adotam livros que temos de adquirir, sem que sejam utilizados durante o curso. Se fossem livros de consulta constante, tudo bem; acadêmicos de Direito e advogados, como os de outras carreiras, têm de ter uma biblioteca condizente, mas não é o caso: o livro é adotado e supostamente deveria ser usado durante as aulas.

Há aqueles outros professores que não preparam as aulas, não pesquisam, não produzem conhecimentos; são meros repetidores de discurso prontos, fazem uso da improvisação docente, dão explicações evasivas e superficiais e, surpreendem o alunado ao exigirem na avaliação escrita temas não abordados em sala de aula. Se ainda fosse ordenado que se pesquisassem e se estudassem esses temas em casa para questionamentos na prova, tudo bem; mas não é o caso.

Não basta possuir um saber jurídico; é preciso saber ensinar. O fato de se ser promotor, juiz ou advogado não é pré-requisito para o exercício do magistério e, tão pouco, os investem da habilitação acadêmica para eficientemente exercer o magistério. Zagury (2006, p.71) afirma que o professor tem por função precípua ensinar. “E ensinar bem, dominando o conteúdo e usando adequadas técnicas de ensino e de avaliação”(grifo nosso). Daí, a importância de se ter certo conhecimento da Pedagogia, ciência da e para a educação e de Didática uma de suas áreas. Sendo o ensino uma ação historicamente situada, a Didática vai se constituindo como uma teoria que possibilita ampliar a compreensão das demandas que a atividade de ensinar produz, com base nos saberes acumulados sobre essa questão. Pimenta e Anastasiou (2002, p.67) afirmam que:

A Didática diz, pois, das finalidades do ensinar dos pontos de vista político- ideológicos (da relação entre conhecimento e poder, conhecimento e formação das sociedades) éticos (da relação entre conhecimento e formação humana, direitos, igualdade, felicidade, cidadania), psicopedagógicos (da relação entre conhecimentos e desenvolvimento das capacidades de pensar e sentir, dos hábitos, atitudes e valores) e os propriamente didáticos (organização dos sistemas de ensino, de formação, das escolas, da seleção de conteúdos de ensino, de currículos e organização dos percursos formativos, das aulas, dos modos de ensinar, da avaliação, da construção do conhecimento).

Não se pode ignorar o conhecimento produzido pela ciência da Pedagogia e por suas ramificações quando se opta por estar no magistério. Digo estar, porque a maioria tem na docência uma forma de complementar seu salário, o popular “bico”. As próprias Instituições de Ensino Superior (IES) não exigem do operador do Direito uma formação no campo de ensinar. Porém, as IES deveriam ser as responsáveis pelo constante aperfeiçoamento profissional de seus professores, através de pós-graduação em nível de especialização (360 horas-aulas), em cursos, por exemplo, como Docência de Ensino Superior e preparar os profissionais do Direito para o magistério.

Essa formação continuada, no entanto, não deve ser concebida como meio de acumulação de títulos e certificados, simplesmente. Deve ser um trabalho de reflexão crítica, conjunta, sobre a práxis docente e sua importante (re) construção permanente.

É preciso retroalimentar o processo ensino-aprendizagem através da reflexão da práxis docente. Freire (1996, p.39) afirma que “quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me”. O que se percebe nessas palavras é que quando se tem humildade e compromisso para rever a práxis docente, forçosamente deve existir propensão à mudança, a fazer diferente, à promoção de si mesmo e do outro e com ela, a transformação do outro e do mundo.

Gil (2005, p.36), conceitua plano de disciplina (ou de ensino) como sendo uma “previsão das atividades a serem desenvolvidas [...], que constitui um marco de referência para as ações do professor, voltadas para o alcance dos objetivos da disciplina [...], para identificar a relação com disciplinas afins e com o curso de forma global”. Ele ainda acrescenta sete princípios norteadores da elaboração de planos e é oportuno conhecê-los ou, talvez, revê-los. Segundo ele, um plano de ensino deve:

· adaptar-se às necessidades, capacidades e interesses do aluno;

· ser elaborado a partir de objetivos realistas, levando em consideração os meios disponíveis para alcançá-los;

· prever tempo suficiente para garantir a assimilação dos conteúdos pelos alunos;

· possibilitar a avaliação objetiva de sua eficácia.

Costumo dizer que cursar uma faculdade particular tem suas vantagens e desvantagens. A desvantagem principal é o alto custo que se paga; a seguir vêm a não reposição de aulas, o distanciamento da coordenação no acompanhamento da práxis docente, a não exigência de cumprimento do cronograma de atividades, juntamente com a reformulação (reelaboração) semestral dos planos de ensino; finalmente, o descaso pelas sugestões feitas pelos discentes para otimização do processo ensino-aprendizagem.

Quanto às vantagens, destaco como principal poder-se fazer planos para o futuro em virtude de se saber a data de conclusão do Curso, visto que as aulas não são interrompidas por greves; outra vantagem é o conforto material: a climatização das salas, uma biblioteca satisfatória e o estacionamento.

Propositalmente, transcrevo o que está na LDB 9394/96, em seu Art. 43:

Art. 43. A educação superior tem por finalidade:

I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; (grifo nosso)

II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua;

III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; (grifo nosso)

IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; (grifo nosso)

V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; (grifo nosso)

VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; (grifo nosso)

VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição. (grifo nosso)

Seria possível atingirmos essas metas elencadas na LDB, e por mim destacadas, dentro do modelo de ensino que vimos recebendo? Obviamente que não, concorda comigo caro/a leitor/a? Inexistem a pesquisa e a extensão no Curso de Direito, a menos que esteja previsto lá pelo seu final (e nada nos foi comunicado nesse sentido), talvez, quando da elaboração da monografia (apenas!). As provas objetivas não estimulam o pensamento reflexivo, apenas a memória. Se não há produção científica no meio acadêmico, seria um contra-senso a realização de Seminário para divulgá-la. Integração de conhecimentos e extensão? Ainda são utopias. O que prevalece é a fragmentação, a compartimentalização do saber, dissociado dos problemas regionais e nacionais. Até aqui não houve prestação de serviços à comunidade como uma meta extensionista. Oxalá, esse dia chegue e com a maior brevidade possível.

Após esses breves comentários sobre alguns aspectos que envolvem o ensino jurídico local, torna-se fácil entender porque a OAB não pode prescindir do Exame de (ingresso à) Ordem. É uma forma de pressionar as próprias Instituições de Ensino, a perseguirem a otimização do processo ensino-aprendizagem dos cursos de Direito e, consequentemente, aumentarem o número de bacharéis melhor qualificados e aptos a prestarem serviços relevantes, eficazes e éticos à sociedade, no exercício da advocacia. Mas que seja essa sua atribuição, pelo menos até o MEC-Sesu se estruturar na assunção de tal responsabilidade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: < www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 jul.09.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 20 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GIL, Antonio Carlos. Metodologia do Ensino Superior. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez, 2002.

ZAGURY, Tânia. O professor refém: para pais e professores entenderem por que fracassa a educação no Brasil. Rio de Janeiro: Record: 2006.

Este artigo foi publicado no Jornal O Progresso, no dia 26/07 e 02/08/2009.

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